Fechei os olhos. Comecei a pensar na Lurdes. A incerteza de tudo impedia-me de ordenar os pensamentos. Imagens, o rever vezes sem conta o rapto, o jipe da Lurdes a serpentear perante a ameaça das kalashnikov, a fuga, o ter deixado a moto a cerca de dez quilómetros da moto do Ricardo e do jipe, com a Carmen só, incrédula, amedrontada, aos gritos, chorando. E perguntas, já estariam todos juntos? Será que já encontraram a minha moto? Turbilhões de flashes.
A fogueira continuava acesa, as silhuetas do grupo, aquele conversar excitado, ansioso, mas quase em sussurro. Dois vigias armados, mais ao longe, iluminados pelas fracas e amareladas luzes da aldeia. O recorte das montanhas, áridas e secas, as tamareiras, as palmeiras, as acácias com os ramos leves e caídos, a ligeira brisa quente, o cheiro a deserto. O céu, aquele magnífico céu. Nele já tinha visto as minhas filhas, também a Lurdes, agora, no seu máximo esplendor, via-o repleto de estrelas, a via láctea, as constelações como se de desenhos se tratassem, estrelas cadentes, satélites fixos e móveis, naquele fundo escuro, azulado de prenúncio de dia. Lindo, deslumbrante!
O Ricardo e o Jorge aproximaram-se. Com eles dois sequestradores, com sorrisos de conquista e armados, que mantiveram uma relativa distância. Sentaram-se a meu lado, de novo trocamos olhares inquisidores. Alguém disse, “estamos fodidos”, que azar, que merda, num misto de resignação e medo, para depois começarmos a desdramatizar, como tentando convencermo-nos de que não passaria de uma pequena aventura de um a dois dias, com sorrisos competindo com a angústia que os nossos olhos não deixavam de revelar.
Curioso, perguntei ao Jorge como “batia” o ópio, o sabor, como era fumar com um grupo de guerrilheiros numa fogueira no meio do deserto sob um tecto deslumbrante e numa situação única. Sorriu. Deve ser uma pedra, pensei.
De repente um som. Longínquo, ténue, mas a caminhar para nós. Parecia um motor. De carro? De moto? Era definitivamente um motor. Sorrimos uns para os outros, quase a festejar o desejado final. Não tirávamos o olhar da provável rota que fazia. O chefe sorrindo, de walkie-talkie no ouvido, levantou-se. Reuniram-se. Os dois sequestradores que estavam perto, por entre palavras imperceptíveis, gestos e sorrisos, convidaram-nos a segui-los. Juntamo-nos ao grupo tentando perceber o que se passava, olhamos para o chefe como procurando uma resposta. Estávamos impacientes.
Ao longe, e já iluminada pela aurora, percebemos ser uma moto, sem luz. Mais um guerrilheiro, igual aos restantes, de fato balushi e armado. Parou junto a um muro de pedra solta. Aproximamo-nos.
Mais baixo, cabelo escuro espesso, penteado pelo vento. Dirigiu-se ao chefe, cumprimentou-o com os tradicionais beijos na face, e desatou a falar, sorridente.
Pareciam boas novas. Falaram cerca de meia hora, olhando-nos de vez em quando. Dirigiu-se a mim e por gestos lá fiquei a saber, que a Lurdes, a Carmen, a Teresa e o João, bem como os jipes e motos, já estavam em Zahedan num hotel. Estava tudo bem. Sorriu-me, agradeci. Também por gestos deu duas a três noites para irmos embora. Era incrível a facilidade em compreender a linguagem gestual e corporal.
Os primeiros raios de sol recortavam as montanhas, apagando a estrelas e revelando uma paisagem gigantesca. Estávamos junto a um vale, com um leito sem água a recortar o solo, seco e árido, árvores a contornar o ondulado que os degelos desenharam. Enormes montanhas a toda a volta, umas ainda com a bruma matinal fazendo um degradé de castanhos e verdes amarelados. O ladrar de um cão, e um vulto ao longe foram os únicos seres que vi, a aldeia parecia querer não acordar.
Entramos de novo na pick-up azul e seguimos em direcção a leste.
terça-feira, 29 de dezembro de 2009
sábado, 5 de dezembro de 2009
primeira noite
Sentados no banco de trás, trocávamos olhares interrogatórios, tentando descobrir respostas nas testas uns dos outros. À frente o Afegão a conduzir e ao lado o chefe, na casa dos vinte, sorriso aberto, kalashnikov na mão, de fato baluchi verde tropa (como a maioria do grupo, mas em bom estado), ar afável e com boa postura.
Viajávamos por entre pedras, de luzes apagadas, a corta-mato, ainda com um luar de quarto crescente, semelhante ao da Bandeira da Turquia, como que a dizer-me “estás longe de casa!” Os meus olhos percorriam tudo, o outro carro, os sequestradores, a forma como estavam dispostos, a paisagem envolvente, o magnífico céu repleto de constelações, a nossa posição em relação às estrelas. Os sorrisos vitoriosos de todos, o olhar de um negro profundo do Afegão, os gestos de comando, enérgicos e decididos do chefe, a forma de falar, o tentar perceber, nem que fosse uma palavra isolada.
Íamos muito devagar devido à extrema dificuldade do terreno e para não sermos detectados, sem luz. A ponto de ver dois guerrilheiros a retirar as pedras e a indicar o melhor trajecto. Pelo menos estava a curtir a viagem. Pensei algo do género: “estes gajos só com tracção atrás, com as caixas das pick-ups cheias de tralha e gente, sem luz nem trilho... qual Dakar qual quê”.
Tinha os sentidos todos apurados, os cheiros, os sons, as palavras imperceptíveis (repletas de arrr. . . mad. . . mud), o sabor do ar. Os solavancos do carro, o ranger das suspensões, a força do motor, a destreza com que serpenteávamos montanha acima.
Mas também o medo, a dúvida, a angústia que os nossos olhos deixavam transparecer, sempre que se cruzavam. Íamos em silêncio. O chefe interpelou-nos sobre “de onde éramos?”, claro que sorriu quando dissemos Portugal, (não por menosprezo, mas porque em Farsi quer dizer laranja, influência da nossa presença na época dos Descobrimentos), “o que fazíamos ali?”, “para onde íamos?”. Lá respondíamos num misto “portu-inglês-gestual” e também questionamos, “o que queriam?”, “porquê nós?”, “por quanto tempo?”, isto num autêntico frenesim, falávamos os três chegados para a frente sobrepondo a voz e mãos uns aos outros. O chefe dizia algo como “atache”, e gesticulava para termos calma, e lá repetia o que já nos tinha tentado dizer no inicio. Não nos satisfez.
Andamos pelo menos quatro horas neste tipo de terreno. Até que ao longe vi luz, tipo estrada, ou aldeia, mas por muito pouco que fosse, senti-me menos longe, mais próximo do que me é familiar, cheguei a pensar: “será que vai acabar?” … “ou não?” … “vamos parar e comer?” … “serão os negociadores?”, naturalmente esperançado num final imediato. Aproximávamo-nos a passo de caracol, os meus olhos tentavam perceber o que estava a ver, descortinar algo, como luzes de carros, ou de janelas, ou de ruas. Mas eram fixas, fracas e não ultrapassavam as três, quatro, abafadas pala enormidade das montanhas.
Começamos a descer, as primeiras acácias (árvore de goma arábica), a erva-de-camelo (vegetação rasa e dura), a areia, os primeiros “atolanços” (igual a ter de empurrar), e junto a um leito de rio seco a paragem. Saímos todos dos carros, sentamo-nos no chão, a primeira fogueira, o primeiro gole de água, a lata de atum e pão, o chá e por fim (e pela primeira vez na vida) o cheiro do ópio que fumavam.
Aproximei-me curioso, fui de imediato convidado a sentar-me e preparavam-se para me deixar experimentar. Recusei, ainda não estava pronto. Mas o cheiro acre e a cor de um âmbar escuro da gigantesca bola de ópio, despertou-me uma enorme curiosidade.
A primeira forte imagem que tenho na memória: a singular posição como o chefe fumava, o único com um cachimbo próprio para fumar ópio, lindíssimo, de madeira, contrastando com a simplicidade dos restantes, que fumavam com papel enrolado, tipo “palhinha”. As silhuetas com o contra-luz da fogueira, debaixo de um tecto repleto de luzes, as árvores, tamareiras e acácias, a rastejante e rara vegetação, a areia, os godos e aquelas luzes fracas, a cem ou duzentos metros, a iluminar uma aldeia de duas a três casas.
Sentei-me encostado à roda de um dos carros, ligeiramente separado do restante grupo. Acendi um cigarro, olhei as estrelas, comecei a imaginar as minhas filhas em forma de constelações, deixei cair uma lágrima. Um dos sequestradores aproximou-se oferecendo-me um copo de chá e um pouco de pão. Olhou-me com um simpático sorriso e por gestos disse que seriam só duas a três noites, que estava tudo bem. Desilusão. Não iria ser hoje.
Viajávamos por entre pedras, de luzes apagadas, a corta-mato, ainda com um luar de quarto crescente, semelhante ao da Bandeira da Turquia, como que a dizer-me “estás longe de casa!” Os meus olhos percorriam tudo, o outro carro, os sequestradores, a forma como estavam dispostos, a paisagem envolvente, o magnífico céu repleto de constelações, a nossa posição em relação às estrelas. Os sorrisos vitoriosos de todos, o olhar de um negro profundo do Afegão, os gestos de comando, enérgicos e decididos do chefe, a forma de falar, o tentar perceber, nem que fosse uma palavra isolada.
Íamos muito devagar devido à extrema dificuldade do terreno e para não sermos detectados, sem luz. A ponto de ver dois guerrilheiros a retirar as pedras e a indicar o melhor trajecto. Pelo menos estava a curtir a viagem. Pensei algo do género: “estes gajos só com tracção atrás, com as caixas das pick-ups cheias de tralha e gente, sem luz nem trilho... qual Dakar qual quê”.
Tinha os sentidos todos apurados, os cheiros, os sons, as palavras imperceptíveis (repletas de arrr. . . mad. . . mud), o sabor do ar. Os solavancos do carro, o ranger das suspensões, a força do motor, a destreza com que serpenteávamos montanha acima.
Mas também o medo, a dúvida, a angústia que os nossos olhos deixavam transparecer, sempre que se cruzavam. Íamos em silêncio. O chefe interpelou-nos sobre “de onde éramos?”, claro que sorriu quando dissemos Portugal, (não por menosprezo, mas porque em Farsi quer dizer laranja, influência da nossa presença na época dos Descobrimentos), “o que fazíamos ali?”, “para onde íamos?”. Lá respondíamos num misto “portu-inglês-gestual” e também questionamos, “o que queriam?”, “porquê nós?”, “por quanto tempo?”, isto num autêntico frenesim, falávamos os três chegados para a frente sobrepondo a voz e mãos uns aos outros. O chefe dizia algo como “atache”, e gesticulava para termos calma, e lá repetia o que já nos tinha tentado dizer no inicio. Não nos satisfez.
Andamos pelo menos quatro horas neste tipo de terreno. Até que ao longe vi luz, tipo estrada, ou aldeia, mas por muito pouco que fosse, senti-me menos longe, mais próximo do que me é familiar, cheguei a pensar: “será que vai acabar?” … “ou não?” … “vamos parar e comer?” … “serão os negociadores?”, naturalmente esperançado num final imediato. Aproximávamo-nos a passo de caracol, os meus olhos tentavam perceber o que estava a ver, descortinar algo, como luzes de carros, ou de janelas, ou de ruas. Mas eram fixas, fracas e não ultrapassavam as três, quatro, abafadas pala enormidade das montanhas.
Começamos a descer, as primeiras acácias (árvore de goma arábica), a erva-de-camelo (vegetação rasa e dura), a areia, os primeiros “atolanços” (igual a ter de empurrar), e junto a um leito de rio seco a paragem. Saímos todos dos carros, sentamo-nos no chão, a primeira fogueira, o primeiro gole de água, a lata de atum e pão, o chá e por fim (e pela primeira vez na vida) o cheiro do ópio que fumavam.
Aproximei-me curioso, fui de imediato convidado a sentar-me e preparavam-se para me deixar experimentar. Recusei, ainda não estava pronto. Mas o cheiro acre e a cor de um âmbar escuro da gigantesca bola de ópio, despertou-me uma enorme curiosidade.
A primeira forte imagem que tenho na memória: a singular posição como o chefe fumava, o único com um cachimbo próprio para fumar ópio, lindíssimo, de madeira, contrastando com a simplicidade dos restantes, que fumavam com papel enrolado, tipo “palhinha”. As silhuetas com o contra-luz da fogueira, debaixo de um tecto repleto de luzes, as árvores, tamareiras e acácias, a rastejante e rara vegetação, a areia, os godos e aquelas luzes fracas, a cem ou duzentos metros, a iluminar uma aldeia de duas a três casas.
Sentei-me encostado à roda de um dos carros, ligeiramente separado do restante grupo. Acendi um cigarro, olhei as estrelas, comecei a imaginar as minhas filhas em forma de constelações, deixei cair uma lágrima. Um dos sequestradores aproximou-se oferecendo-me um copo de chá e um pouco de pão. Olhou-me com um simpático sorriso e por gestos disse que seriam só duas a três noites, que estava tudo bem. Desilusão. Não iria ser hoje.
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