sexta-feira, 30 de outubro de 2009

o rapto






Para trás tinha ficado Bam e a sua maravilhosa cidadela. Entravamos na província do Sistan Bulashistan, rota de passagem de ópio, uma zona árida, imensa e incontrolável, dada a enorme proliferação de tribos e a agrura do terreno. A estrada serpenteava por entre planícies de cor amarelada e lagos, alguns salgados que reflectiam o sol como de neve se tratasse, outros de um azul-marinho forte. Estava calor acima dos 30º, cruzamo-nos com camiões Iranianos e Paquistaneses, fáceis de distinguir pelo colorido e os efeitos que os Paquistaneses ostentam, com orgulho, nos seus “Mack” fumegantes e com milhões de quilómetros. Os habituais cumprimentos e essa curiosa cumplicidade que existe entre motociclistas e camionistas. Algumas paragens para filmar as motos a rasgarem a beleza da paisagem. Já não era cedo, faltavam cerca de 300 quilómetros para Zahedan, tínhamos de continuar numa toada rápida.
Liguei os head-phones, deixei o capacete aberto para sentir o ar na cara e segui o jipe da Lurdes, ao ritmo de “Pedro Abrunhosa”. As planícies tinham dado lugar a montanhas enormes, longínquas e castanhas, recortadas pelo fim do dia. Mantínhamos a formação habitual, o João à frente, o jipe da Lurdes e da Teresa, eu, o jipe da Cármen e do Jorge e por fim a moto do Ricardo. Numa zona a subir e com curvas, chamou-me a atenção uma pick-up branca que me ultrapassou de forma pouco usual, acelerei um pouco, aproximei-me do jipe da Lurdes, tentando com sinais de luz fazê-la perceber da necessidade de acelerar. Algo não estava bem. De imediato, da caixa da pick-up, surgem de entre cobertores e panos coloridos, três ou quatro silhuetas com metralhadoras. Tentam fazer parar a Lurdes, que com consecutivos ziguezagueares e quase embatendo na traseira da pick-up, conseguiu escapar. Parei, assistindo incrédulo ao que se estava a passar. Dei meia volta e tentei avisar a Cármen e o Ricardo, mas a proximidade a que estes vinham impossibilitou-os de fugir. Ainda os segui tendo ficado novamente parado a cerca de 50 metros. Assisti à forma como tiraram o Jorge do jipe, os tiros das Kalashnikov, o Ricardo a parar a moto e com o andar que lhe é característico a aproximar-se e de imediato ser manietado. Mais uns tiros e fugi.
Baixei o capacete e dei gás, 150, 160, lembrava-me de termos passado um controle policial a poucos quilómetros e foi essa a minha primeira intenção. Sempre a abrir, ultrapassei uma camioneta de passageiros. Entretanto na minha cabeça apenas dúvidas, lembrei-me da presença de uma outra pick-up azul a que não tinha dado importância. De onde surgiu? Do mesmo trajecto ou de sentido contrário? E a Lurdes? Será que tinha conseguido passar ou não? Um turbilhão de pensamentos obrigaram-me a parar na berma, queria respostas, ter certezas, estava assustado e preocupado, principalmente com a Lurdes. Contrariando as indicações que os passageiros da camioneta me deram, com gestos vigorosos, para continuar a fuga, voltei para trás. Nessa altura ouvi nos head-phones “Será que ainda me resta, tempo contigo, ou já te levam balas de um qualquer inimigo……”, lembrei-me de me ter cruzado com um camião cisterna, tirei os phones, mas não consegui sequer voltar a ver o camião. A pick-up azul interceptou-me, nem tempo tive para pôr a moto no descanso, deixando-a cair. Pela primeira vez vi os olhos gélidos do Afegão que a conduzia e que com um tiro intimidatório me obrigou a subir para a caixa, tendo de imediato sido imobilizado, pela bota de um dos sequestradores.
Caí em cima do Jorge ainda com o zumbido do tiro nos ouvidos, os nossos olhares cruzaram-se e tive uma sensação de alívio pelo facto de não estar só. Mais tarde o Jorge confessou-me ter sentido o mesmo quando me viu. Não nos deixaram sequer falar, levando de imediato com o cano da metralhadora no capacete quando balbuciei algumas palavras. Senti-me mesmo mal, aterrorizado, eram quatro os homens que estavam connosco na caixa da pick-up, todos de fatos Baluchi e metralhadoras, com a cara meio tapada pelos lenços que envolvem a cabeça e olhares frios e secos, parecidos com os que hoje muitas vezes vemos nos media, sempre rotulados de maus da fita quando se fala das guerras que Americanos criam lá prós lados do Afeganistão e Iraque (mas isso é outra história). Sentia os solavancos da estrada, tínhamos entrado em terra, pensei. Andamos cerca de duas horas em estradões e trilhos até pararem pela primeira vez.
Da pick-up branca saiu o Ricardo. Não pude na altura evitar um sorriso quando nos olhamos, nenhum de nós sabia ao certo quem tinha sido raptado. Fomos só nós, fixe os outros safaram-se! Pela primeira vez, vimos os sequestradores, eram dez, com idades entre os dezoito e os trinta. Ficamos a saber não por palavras (eles não falavam qualquer língua perceptível, nem nós percebíamos “Urdo” linguagem utilizada nas zonas tribais do Irão, Paquistão e Afeganistão, nem “Farsi”, a língua oficial do Irão...foi mesmo por gestos e com uns “yes “e “no” pelo meio) que a intenção deles não era de cariz político, mas sim para nos usar como moeda de troca por um narcotraficante e irmão do cabecilha, condenado à morte por tráfico de cerca 700 kg’s de ópio. Fiquei momentaneamente mais calmo, tinha conhecimento de casos anteriores, nomeadamente de uns padres Italianos, que pelo mesmo motivo ficaram dois dias sequestrados. No entanto, não deixavam de manifestar desagrado com o poder religioso, gritando em uníssono, de armas em punho, palavras de ordem “anti-khomeini”. Talvez para nos agradar, pensei. A noite já se tinha instalado, fumamos um cigarro, sentaram-nos dentro da pick-up azul e partimos em direcção às intransponíveis e áridas montanhas, desenhadas numa imensidão de estrelas.


segunda-feira, 26 de outubro de 2009

histórias de um viajante

Das muitas viagens que realizei, e que me permitiram conhecer alguns dos mais fascinantes locais do mundo, há uma que me ficará mais fortemente gravada.
Missão Macau 99 – Objectivo: Ligar Porto a Macau por terra e de moto
Aproveitando a entrega de Macau à China, idealizei, conjuntamente com o meu colega de viagens João Meneses, a ligação de moto do Porto a Macau, isto no decorrer da viagem ao Irão em 98.
Tentamos oficializar a viagem como mais um evento dos vários que o governo tinha planeado e preparado para o dia das cerimónias de entrega do território. Contactamos diversos organismos oficiais que independentemente de acharem a ideia brilhante, nunca se disponibilizaram a apoiá-la. Surgiu o Ricardo Andrea, um amigo que trabalhava para a SIC, também motociclista e que se associou à ideia, resultando a venda da viagem à estação de TV.
Para trás ficaram horas de trabalho, discussões sobre trajectos, número de pessoas envolvidas, quais as mais indicadas, licenças, vistos e toda a panóplia de burocracias, papeladas e afins inerentes a uma organização desta dimensão.
Até sermos recebidos pelo Presidente da República, que nos incumbiu de levar a Bandeira Nacional que ficaria hasteada na casa de Portugal em Macau, numa cerimónia no Palácio de Belém, muitíssimo interessante, agradável e despretensiosa como só o Dr. Jorge Sampaio poderia proporcionar.
O que vou tentar relatar é a viagem, os quilómetros de estrada, os países atravessados, as paisagens, as cidades e aldeias, as diferentes formas de encarar a vida, os meus sentimentos, a vivência, as fronteiras, e o momento mais forte que até hoje tive o “privilégio” de viver (o sequestro).
Viajo preferencialmente de moto, embora qualquer tipo de veículo possa ser utilizado. Uma das mais belas viagens foi feita de jipe, concretamente à América do Sul onde cruzei países como Brasil, Bolívia, Peru, Chile e Argentina, estive no Pantanal, na Amazónia, no Titicaca, no Altiplano, em Machu Pichu, no Pacífico, no deserto do Atacama, no Sallar de Yuni, nas Pampas... fascinante é o mínimo com que a poderei rotular.
Mas a moto tem muitas vantagens, é como estar nos cenários que com um enorme prazer são vividos como se deles fizéssemos parte, a maior proximidade do ambiente, das pessoas, do clima, das condições da estrada e por incrível que possa parecer pelo conforto, disponibilidade, facilidade de circulação, rapidez (não necessariamente velocidade), maneabilidade, utilidade.
Deixando para trás a Europa, entrei num dos países de que mais gosto, Turquia, onde considero ter verdadeiramente começado a viagem.
Após ter partido de Istambul, com o Bósforo a espelhar a Grande Mesquita e Santa Sofia, demoramos quatro dias até chegar ao monte Ararat, (no qual se julga ter “atracado” a arca de Noé) e faz fronteira com o Irão. As habituais formalidades, a omnipresença do Khomeini e Khamenei e o fascínio de voltar a este histórico País. Cidades como Tabriz e Teerão, populosas e poluídas, são a primeira imagem que juntamente com os mantos negros que cobrem as mulheres, dão uma misteriosa e intimidadora sensação de diferença cultural… Andar de táxi (existem os oficiais e todos os outros, nos quais nunca viajamos sós, a qualquer momento entra mais um passageiro e outro e outro, até a lotação ficar completa. É o máximo!), visitar museus e bazares é a melhor forma de conhecer este hospitaleiro povo (ávido de conhecer a nossa realidade), principalmente os bazares onde a vida fervilha num vai e vem de trocas comerciais. A proximidade do deserto dá uma cor única a cidades como Yazd, Esfahan e Shiiraz, lindas, quentes e cheias de história. Foi em Persópolis que o império Persa cresceu e está ali à nossa espera. Lagos salgados no meio do deserto. E Bam, cidadela com mais de 2000 anos feita de tijolo e lama, repleta de ruelas estreitas e bares com chá e tabaco que fumamos em lindos cachimbos de água.
Foi num destes bares que os nossos raptores nos identificaram para, posteriormente, nos sequestrarem a meio do trajecto até Zahedan, (serviríamos de moeda de troca por um narcotraficante condenado à morte) cidade multifacetada, cheia de diferentes etnias, que cresceu com tráfico de gasolina e drogas (ópio), dada a proximidade de países como o Afeganistão e Paquistão. Mas acabei por não chegar a Zahedan, a 200Km no meio do deserto e montanhas, intimidado a tiros de Kalashnikov e atirado para a caixa de uma pick-up, passei a viver um misto de terror e deslumbre. O inacreditável tinha dado lugar ao cansaço, à fome e ao frio imenso da noite repleta de estrelas, às silhuetas dos traficantes, às fogueiras dos nómadas, às reuniões de anciãos, à calma, ao silêncio e à imensidão do deserto. Os oásis encantados, os camelos selvagens, a fome, o pão, a lata de atum, a forma primitiva como aquele povo vive, as grutas, os leitos secos dos rios, a busca de água, os chefes das diferentes tribos com que nos cruzávamos (e com quem tinham de negociar a nossa permanência no território), o dormir sempre em cima de pedra, a troca de ópio por comida, a necessidade de caminhar sempre… e sempre, os rostos rudes, os olhos, o espanto das crianças, o olhar fugidio das mulheres. A solidão, a saudade, a ansiedade, a angústia e o espanto por estar a viver tudo isto. A falta que o mais básico faz, um pouco de papel... um cigarro, é parte do que me recordo desses inimagináveis dias que vivi.
Foi sem dúvida uma experiência única e até determinado ponto, gratificante. Ensinou-me a olhar os meus valores de outra forma e a viver com mais sabor.