terça-feira, 29 de dezembro de 2009

dia um (o amanhecer)

Fechei os olhos. Comecei a pensar na Lurdes. A incerteza de tudo impedia-me de ordenar os pensamentos. Imagens, o rever vezes sem conta o rapto, o jipe da Lurdes a serpentear perante a ameaça das kalashnikov, a fuga, o ter deixado a moto a cerca de dez quilómetros da moto do Ricardo e do jipe, com a Carmen só, incrédula, amedrontada, aos gritos, chorando. E perguntas, já estariam todos juntos? Será que já encontraram a minha moto? Turbilhões de flashes.

A fogueira continuava acesa, as silhuetas do grupo, aquele conversar excitado, ansioso, mas quase em sussurro. Dois vigias armados, mais ao longe, iluminados pelas fracas e amareladas luzes da aldeia. O recorte das montanhas, áridas e secas, as tamareiras, as palmeiras, as acácias com os ramos leves e caídos, a ligeira brisa quente, o cheiro a deserto. O céu, aquele magnífico céu. Nele já tinha visto as minhas filhas, também a Lurdes, agora, no seu máximo esplendor, via-o repleto de estrelas, a via láctea, as constelações como se de desenhos se tratassem, estrelas cadentes, satélites fixos e móveis, naquele fundo escuro, azulado de prenúncio de dia. Lindo, deslumbrante!

O Ricardo e o Jorge aproximaram-se. Com eles dois sequestradores, com sorrisos de conquista e armados, que mantiveram uma relativa distância. Sentaram-se a meu lado, de novo trocamos olhares inquisidores. Alguém disse, “estamos fodidos”, que azar, que merda, num misto de resignação e medo, para depois começarmos a desdramatizar, como tentando convencermo-nos de que não passaria de uma pequena aventura de um a dois dias, com sorrisos competindo com a angústia que os nossos olhos não deixavam de revelar.

Curioso, perguntei ao Jorge como “batia” o ópio, o sabor, como era fumar com um grupo de guerrilheiros numa fogueira no meio do deserto sob um tecto deslumbrante e numa situação única. Sorriu. Deve ser uma pedra, pensei.

De repente um som. Longínquo, ténue, mas a caminhar para nós. Parecia um motor. De carro? De moto? Era definitivamente um motor. Sorrimos uns para os outros, quase a festejar o desejado final. Não tirávamos o olhar da provável rota que fazia. O chefe sorrindo, de walkie-talkie no ouvido, levantou-se. Reuniram-se. Os dois sequestradores que estavam perto, por entre palavras imperceptíveis, gestos e sorrisos, convidaram-nos a segui-los. Juntamo-nos ao grupo tentando perceber o que se passava, olhamos para o chefe como procurando uma resposta. Estávamos impacientes.

Ao longe, e já iluminada pela aurora, percebemos ser uma moto, sem luz. Mais um guerrilheiro, igual aos restantes, de fato balushi e armado. Parou junto a um muro de pedra solta. Aproximamo-nos.

Mais baixo, cabelo escuro espesso, penteado pelo vento. Dirigiu-se ao chefe, cumprimentou-o com os tradicionais beijos na face, e desatou a falar, sorridente.

Pareciam boas novas. Falaram cerca de meia hora, olhando-nos de vez em quando. Dirigiu-se a mim e por gestos lá fiquei a saber, que a Lurdes, a Carmen, a Teresa e o João, bem como os jipes e motos, já estavam em Zahedan num hotel. Estava tudo bem. Sorriu-me, agradeci. Também por gestos deu duas a três noites para irmos embora. Era incrível a facilidade em compreender a linguagem gestual e corporal.

Os primeiros raios de sol recortavam as montanhas, apagando a estrelas e revelando uma paisagem gigantesca. Estávamos junto a um vale, com um leito sem água a recortar o solo, seco e árido, árvores a contornar o ondulado que os degelos desenharam. Enormes montanhas a toda a volta, umas ainda com a bruma matinal fazendo um degradé de castanhos e verdes amarelados. O ladrar de um cão, e um vulto ao longe foram os únicos seres que vi, a aldeia parecia querer não acordar.

Entramos de novo na pick-up azul e seguimos em direcção a leste.

sábado, 5 de dezembro de 2009

primeira noite

Sentados no banco de trás, trocávamos olhares interrogatórios, tentando descobrir respostas nas testas uns dos outros. À frente o Afegão a conduzir e ao lado o chefe, na casa dos vinte, sorriso aberto, kalashnikov na mão, de fato baluchi verde tropa (como a maioria do grupo, mas em bom estado), ar afável e com boa postura.
Viajávamos por entre pedras, de luzes apagadas, a corta-mato, ainda com um luar de quarto crescente, semelhante ao da Bandeira da Turquia, como que a dizer-me “estás longe de casa!” Os meus olhos percorriam tudo, o outro carro, os sequestradores, a forma como estavam dispostos, a paisagem envolvente, o magnífico céu repleto de constelações, a nossa posição em relação às estrelas. Os sorrisos vitoriosos de todos, o olhar de um negro profundo do Afegão, os gestos de comando, enérgicos e decididos do chefe, a forma de falar, o tentar perceber, nem que fosse uma palavra isolada.
Íamos muito devagar devido à extrema dificuldade do terreno e para não sermos detectados, sem luz. A ponto de ver dois guerrilheiros a retirar as pedras e a indicar o melhor trajecto. Pelo menos estava a curtir a viagem. Pensei algo do género: “estes gajos só com tracção atrás, com as caixas das pick-ups cheias de tralha e gente, sem luz nem trilho... qual Dakar qual quê”.
Tinha os sentidos todos apurados, os cheiros, os sons, as palavras imperceptíveis (repletas de arrr. . . mad. . . mud), o sabor do ar. Os solavancos do carro, o ranger das suspensões, a força do motor, a destreza com que serpenteávamos montanha acima.
Mas também o medo, a dúvida, a angústia que os nossos olhos deixavam transparecer, sempre que se cruzavam. Íamos em silêncio. O chefe interpelou-nos sobre “de onde éramos?”, claro que sorriu quando dissemos Portugal, (não por menosprezo, mas porque em Farsi quer dizer laranja, influência da nossa presença na época dos Descobrimentos), “o que fazíamos ali?”, “para onde íamos?”. Lá respondíamos num misto “portu-inglês-gestual” e também questionamos, “o que queriam?”, “porquê nós?”, “por quanto tempo?”, isto num autêntico frenesim, falávamos os três chegados para a frente sobrepondo a voz e mãos uns aos outros. O chefe dizia algo como “atache”, e gesticulava para termos calma, e lá repetia o que já nos tinha tentado dizer no inicio. Não nos satisfez.
Andamos pelo menos quatro horas neste tipo de terreno. Até que ao longe vi luz, tipo estrada, ou aldeia, mas por muito pouco que fosse, senti-me menos longe, mais próximo do que me é familiar, cheguei a pensar: “será que vai acabar?” … “ou não?” … “vamos parar e comer?” … “serão os negociadores?”, naturalmente esperançado num final imediato. Aproximávamo-nos a passo de caracol, os meus olhos tentavam perceber o que estava a ver, descortinar algo, como luzes de carros, ou de janelas, ou de ruas. Mas eram fixas, fracas e não ultrapassavam as três, quatro, abafadas pala enormidade das montanhas.
Começamos a descer, as primeiras acácias (árvore de goma arábica), a erva-de-camelo (vegetação rasa e dura), a areia, os primeiros “atolanços” (igual a ter de empurrar), e junto a um leito de rio seco a paragem. Saímos todos dos carros, sentamo-nos no chão, a primeira fogueira, o primeiro gole de água, a lata de atum e pão, o chá e por fim (e pela primeira vez na vida) o cheiro do ópio que fumavam.
Aproximei-me curioso, fui de imediato convidado a sentar-me e preparavam-se para me deixar experimentar. Recusei, ainda não estava pronto. Mas o cheiro acre e a cor de um âmbar escuro da gigantesca bola de ópio, despertou-me uma enorme curiosidade.
A primeira forte imagem que tenho na memória: a singular posição como o chefe fumava, o único com um cachimbo próprio para fumar ópio, lindíssimo, de madeira, contrastando com a simplicidade dos restantes, que fumavam com papel enrolado, tipo “palhinha”. As silhuetas com o contra-luz da fogueira, debaixo de um tecto repleto de luzes, as árvores, tamareiras e acácias, a rastejante e rara vegetação, a areia, os godos e aquelas luzes fracas, a cem ou duzentos metros, a iluminar uma aldeia de duas a três casas.
Sentei-me encostado à roda de um dos carros, ligeiramente separado do restante grupo. Acendi um cigarro, olhei as estrelas, comecei a imaginar as minhas filhas em forma de constelações, deixei cair uma lágrima. Um dos sequestradores aproximou-se oferecendo-me um copo de chá e um pouco de pão. Olhou-me com um simpático sorriso e por gestos disse que seriam só duas a três noites, que estava tudo bem. Desilusão. Não iria ser hoje.

sexta-feira, 30 de outubro de 2009

o rapto






Para trás tinha ficado Bam e a sua maravilhosa cidadela. Entravamos na província do Sistan Bulashistan, rota de passagem de ópio, uma zona árida, imensa e incontrolável, dada a enorme proliferação de tribos e a agrura do terreno. A estrada serpenteava por entre planícies de cor amarelada e lagos, alguns salgados que reflectiam o sol como de neve se tratasse, outros de um azul-marinho forte. Estava calor acima dos 30º, cruzamo-nos com camiões Iranianos e Paquistaneses, fáceis de distinguir pelo colorido e os efeitos que os Paquistaneses ostentam, com orgulho, nos seus “Mack” fumegantes e com milhões de quilómetros. Os habituais cumprimentos e essa curiosa cumplicidade que existe entre motociclistas e camionistas. Algumas paragens para filmar as motos a rasgarem a beleza da paisagem. Já não era cedo, faltavam cerca de 300 quilómetros para Zahedan, tínhamos de continuar numa toada rápida.
Liguei os head-phones, deixei o capacete aberto para sentir o ar na cara e segui o jipe da Lurdes, ao ritmo de “Pedro Abrunhosa”. As planícies tinham dado lugar a montanhas enormes, longínquas e castanhas, recortadas pelo fim do dia. Mantínhamos a formação habitual, o João à frente, o jipe da Lurdes e da Teresa, eu, o jipe da Cármen e do Jorge e por fim a moto do Ricardo. Numa zona a subir e com curvas, chamou-me a atenção uma pick-up branca que me ultrapassou de forma pouco usual, acelerei um pouco, aproximei-me do jipe da Lurdes, tentando com sinais de luz fazê-la perceber da necessidade de acelerar. Algo não estava bem. De imediato, da caixa da pick-up, surgem de entre cobertores e panos coloridos, três ou quatro silhuetas com metralhadoras. Tentam fazer parar a Lurdes, que com consecutivos ziguezagueares e quase embatendo na traseira da pick-up, conseguiu escapar. Parei, assistindo incrédulo ao que se estava a passar. Dei meia volta e tentei avisar a Cármen e o Ricardo, mas a proximidade a que estes vinham impossibilitou-os de fugir. Ainda os segui tendo ficado novamente parado a cerca de 50 metros. Assisti à forma como tiraram o Jorge do jipe, os tiros das Kalashnikov, o Ricardo a parar a moto e com o andar que lhe é característico a aproximar-se e de imediato ser manietado. Mais uns tiros e fugi.
Baixei o capacete e dei gás, 150, 160, lembrava-me de termos passado um controle policial a poucos quilómetros e foi essa a minha primeira intenção. Sempre a abrir, ultrapassei uma camioneta de passageiros. Entretanto na minha cabeça apenas dúvidas, lembrei-me da presença de uma outra pick-up azul a que não tinha dado importância. De onde surgiu? Do mesmo trajecto ou de sentido contrário? E a Lurdes? Será que tinha conseguido passar ou não? Um turbilhão de pensamentos obrigaram-me a parar na berma, queria respostas, ter certezas, estava assustado e preocupado, principalmente com a Lurdes. Contrariando as indicações que os passageiros da camioneta me deram, com gestos vigorosos, para continuar a fuga, voltei para trás. Nessa altura ouvi nos head-phones “Será que ainda me resta, tempo contigo, ou já te levam balas de um qualquer inimigo……”, lembrei-me de me ter cruzado com um camião cisterna, tirei os phones, mas não consegui sequer voltar a ver o camião. A pick-up azul interceptou-me, nem tempo tive para pôr a moto no descanso, deixando-a cair. Pela primeira vez vi os olhos gélidos do Afegão que a conduzia e que com um tiro intimidatório me obrigou a subir para a caixa, tendo de imediato sido imobilizado, pela bota de um dos sequestradores.
Caí em cima do Jorge ainda com o zumbido do tiro nos ouvidos, os nossos olhares cruzaram-se e tive uma sensação de alívio pelo facto de não estar só. Mais tarde o Jorge confessou-me ter sentido o mesmo quando me viu. Não nos deixaram sequer falar, levando de imediato com o cano da metralhadora no capacete quando balbuciei algumas palavras. Senti-me mesmo mal, aterrorizado, eram quatro os homens que estavam connosco na caixa da pick-up, todos de fatos Baluchi e metralhadoras, com a cara meio tapada pelos lenços que envolvem a cabeça e olhares frios e secos, parecidos com os que hoje muitas vezes vemos nos media, sempre rotulados de maus da fita quando se fala das guerras que Americanos criam lá prós lados do Afeganistão e Iraque (mas isso é outra história). Sentia os solavancos da estrada, tínhamos entrado em terra, pensei. Andamos cerca de duas horas em estradões e trilhos até pararem pela primeira vez.
Da pick-up branca saiu o Ricardo. Não pude na altura evitar um sorriso quando nos olhamos, nenhum de nós sabia ao certo quem tinha sido raptado. Fomos só nós, fixe os outros safaram-se! Pela primeira vez, vimos os sequestradores, eram dez, com idades entre os dezoito e os trinta. Ficamos a saber não por palavras (eles não falavam qualquer língua perceptível, nem nós percebíamos “Urdo” linguagem utilizada nas zonas tribais do Irão, Paquistão e Afeganistão, nem “Farsi”, a língua oficial do Irão...foi mesmo por gestos e com uns “yes “e “no” pelo meio) que a intenção deles não era de cariz político, mas sim para nos usar como moeda de troca por um narcotraficante e irmão do cabecilha, condenado à morte por tráfico de cerca 700 kg’s de ópio. Fiquei momentaneamente mais calmo, tinha conhecimento de casos anteriores, nomeadamente de uns padres Italianos, que pelo mesmo motivo ficaram dois dias sequestrados. No entanto, não deixavam de manifestar desagrado com o poder religioso, gritando em uníssono, de armas em punho, palavras de ordem “anti-khomeini”. Talvez para nos agradar, pensei. A noite já se tinha instalado, fumamos um cigarro, sentaram-nos dentro da pick-up azul e partimos em direcção às intransponíveis e áridas montanhas, desenhadas numa imensidão de estrelas.


segunda-feira, 26 de outubro de 2009

histórias de um viajante

Das muitas viagens que realizei, e que me permitiram conhecer alguns dos mais fascinantes locais do mundo, há uma que me ficará mais fortemente gravada.
Missão Macau 99 – Objectivo: Ligar Porto a Macau por terra e de moto
Aproveitando a entrega de Macau à China, idealizei, conjuntamente com o meu colega de viagens João Meneses, a ligação de moto do Porto a Macau, isto no decorrer da viagem ao Irão em 98.
Tentamos oficializar a viagem como mais um evento dos vários que o governo tinha planeado e preparado para o dia das cerimónias de entrega do território. Contactamos diversos organismos oficiais que independentemente de acharem a ideia brilhante, nunca se disponibilizaram a apoiá-la. Surgiu o Ricardo Andrea, um amigo que trabalhava para a SIC, também motociclista e que se associou à ideia, resultando a venda da viagem à estação de TV.
Para trás ficaram horas de trabalho, discussões sobre trajectos, número de pessoas envolvidas, quais as mais indicadas, licenças, vistos e toda a panóplia de burocracias, papeladas e afins inerentes a uma organização desta dimensão.
Até sermos recebidos pelo Presidente da República, que nos incumbiu de levar a Bandeira Nacional que ficaria hasteada na casa de Portugal em Macau, numa cerimónia no Palácio de Belém, muitíssimo interessante, agradável e despretensiosa como só o Dr. Jorge Sampaio poderia proporcionar.
O que vou tentar relatar é a viagem, os quilómetros de estrada, os países atravessados, as paisagens, as cidades e aldeias, as diferentes formas de encarar a vida, os meus sentimentos, a vivência, as fronteiras, e o momento mais forte que até hoje tive o “privilégio” de viver (o sequestro).
Viajo preferencialmente de moto, embora qualquer tipo de veículo possa ser utilizado. Uma das mais belas viagens foi feita de jipe, concretamente à América do Sul onde cruzei países como Brasil, Bolívia, Peru, Chile e Argentina, estive no Pantanal, na Amazónia, no Titicaca, no Altiplano, em Machu Pichu, no Pacífico, no deserto do Atacama, no Sallar de Yuni, nas Pampas... fascinante é o mínimo com que a poderei rotular.
Mas a moto tem muitas vantagens, é como estar nos cenários que com um enorme prazer são vividos como se deles fizéssemos parte, a maior proximidade do ambiente, das pessoas, do clima, das condições da estrada e por incrível que possa parecer pelo conforto, disponibilidade, facilidade de circulação, rapidez (não necessariamente velocidade), maneabilidade, utilidade.
Deixando para trás a Europa, entrei num dos países de que mais gosto, Turquia, onde considero ter verdadeiramente começado a viagem.
Após ter partido de Istambul, com o Bósforo a espelhar a Grande Mesquita e Santa Sofia, demoramos quatro dias até chegar ao monte Ararat, (no qual se julga ter “atracado” a arca de Noé) e faz fronteira com o Irão. As habituais formalidades, a omnipresença do Khomeini e Khamenei e o fascínio de voltar a este histórico País. Cidades como Tabriz e Teerão, populosas e poluídas, são a primeira imagem que juntamente com os mantos negros que cobrem as mulheres, dão uma misteriosa e intimidadora sensação de diferença cultural… Andar de táxi (existem os oficiais e todos os outros, nos quais nunca viajamos sós, a qualquer momento entra mais um passageiro e outro e outro, até a lotação ficar completa. É o máximo!), visitar museus e bazares é a melhor forma de conhecer este hospitaleiro povo (ávido de conhecer a nossa realidade), principalmente os bazares onde a vida fervilha num vai e vem de trocas comerciais. A proximidade do deserto dá uma cor única a cidades como Yazd, Esfahan e Shiiraz, lindas, quentes e cheias de história. Foi em Persópolis que o império Persa cresceu e está ali à nossa espera. Lagos salgados no meio do deserto. E Bam, cidadela com mais de 2000 anos feita de tijolo e lama, repleta de ruelas estreitas e bares com chá e tabaco que fumamos em lindos cachimbos de água.
Foi num destes bares que os nossos raptores nos identificaram para, posteriormente, nos sequestrarem a meio do trajecto até Zahedan, (serviríamos de moeda de troca por um narcotraficante condenado à morte) cidade multifacetada, cheia de diferentes etnias, que cresceu com tráfico de gasolina e drogas (ópio), dada a proximidade de países como o Afeganistão e Paquistão. Mas acabei por não chegar a Zahedan, a 200Km no meio do deserto e montanhas, intimidado a tiros de Kalashnikov e atirado para a caixa de uma pick-up, passei a viver um misto de terror e deslumbre. O inacreditável tinha dado lugar ao cansaço, à fome e ao frio imenso da noite repleta de estrelas, às silhuetas dos traficantes, às fogueiras dos nómadas, às reuniões de anciãos, à calma, ao silêncio e à imensidão do deserto. Os oásis encantados, os camelos selvagens, a fome, o pão, a lata de atum, a forma primitiva como aquele povo vive, as grutas, os leitos secos dos rios, a busca de água, os chefes das diferentes tribos com que nos cruzávamos (e com quem tinham de negociar a nossa permanência no território), o dormir sempre em cima de pedra, a troca de ópio por comida, a necessidade de caminhar sempre… e sempre, os rostos rudes, os olhos, o espanto das crianças, o olhar fugidio das mulheres. A solidão, a saudade, a ansiedade, a angústia e o espanto por estar a viver tudo isto. A falta que o mais básico faz, um pouco de papel... um cigarro, é parte do que me recordo desses inimagináveis dias que vivi.
Foi sem dúvida uma experiência única e até determinado ponto, gratificante. Ensinou-me a olhar os meus valores de outra forma e a viver com mais sabor.

sexta-feira, 19 de junho de 2009

porquê um blogue?

Porque faz dez anos que fui raptado no Irão, pelo facto deste ano ter perdido um Amigo e mentor, José Megre, que ficará para sempre na memória de quem com ele teve o privilégio de viajar, achei ser a altura de partilhar uma das mais ricas experiências que vivi.

Este gosto de viajar pelo mundo, visitar países fora dos roteiros habituais, da paixão de conhecer outras culturas, de viver o momento como um prazer único, fez-me aventurar por este incrível mundo em que vivemos ao volante de um carro, jeep ou moto.