segunda-feira, 26 de outubro de 2009

histórias de um viajante

Das muitas viagens que realizei, e que me permitiram conhecer alguns dos mais fascinantes locais do mundo, há uma que me ficará mais fortemente gravada.
Missão Macau 99 – Objectivo: Ligar Porto a Macau por terra e de moto
Aproveitando a entrega de Macau à China, idealizei, conjuntamente com o meu colega de viagens João Meneses, a ligação de moto do Porto a Macau, isto no decorrer da viagem ao Irão em 98.
Tentamos oficializar a viagem como mais um evento dos vários que o governo tinha planeado e preparado para o dia das cerimónias de entrega do território. Contactamos diversos organismos oficiais que independentemente de acharem a ideia brilhante, nunca se disponibilizaram a apoiá-la. Surgiu o Ricardo Andrea, um amigo que trabalhava para a SIC, também motociclista e que se associou à ideia, resultando a venda da viagem à estação de TV.
Para trás ficaram horas de trabalho, discussões sobre trajectos, número de pessoas envolvidas, quais as mais indicadas, licenças, vistos e toda a panóplia de burocracias, papeladas e afins inerentes a uma organização desta dimensão.
Até sermos recebidos pelo Presidente da República, que nos incumbiu de levar a Bandeira Nacional que ficaria hasteada na casa de Portugal em Macau, numa cerimónia no Palácio de Belém, muitíssimo interessante, agradável e despretensiosa como só o Dr. Jorge Sampaio poderia proporcionar.
O que vou tentar relatar é a viagem, os quilómetros de estrada, os países atravessados, as paisagens, as cidades e aldeias, as diferentes formas de encarar a vida, os meus sentimentos, a vivência, as fronteiras, e o momento mais forte que até hoje tive o “privilégio” de viver (o sequestro).
Viajo preferencialmente de moto, embora qualquer tipo de veículo possa ser utilizado. Uma das mais belas viagens foi feita de jipe, concretamente à América do Sul onde cruzei países como Brasil, Bolívia, Peru, Chile e Argentina, estive no Pantanal, na Amazónia, no Titicaca, no Altiplano, em Machu Pichu, no Pacífico, no deserto do Atacama, no Sallar de Yuni, nas Pampas... fascinante é o mínimo com que a poderei rotular.
Mas a moto tem muitas vantagens, é como estar nos cenários que com um enorme prazer são vividos como se deles fizéssemos parte, a maior proximidade do ambiente, das pessoas, do clima, das condições da estrada e por incrível que possa parecer pelo conforto, disponibilidade, facilidade de circulação, rapidez (não necessariamente velocidade), maneabilidade, utilidade.
Deixando para trás a Europa, entrei num dos países de que mais gosto, Turquia, onde considero ter verdadeiramente começado a viagem.
Após ter partido de Istambul, com o Bósforo a espelhar a Grande Mesquita e Santa Sofia, demoramos quatro dias até chegar ao monte Ararat, (no qual se julga ter “atracado” a arca de Noé) e faz fronteira com o Irão. As habituais formalidades, a omnipresença do Khomeini e Khamenei e o fascínio de voltar a este histórico País. Cidades como Tabriz e Teerão, populosas e poluídas, são a primeira imagem que juntamente com os mantos negros que cobrem as mulheres, dão uma misteriosa e intimidadora sensação de diferença cultural… Andar de táxi (existem os oficiais e todos os outros, nos quais nunca viajamos sós, a qualquer momento entra mais um passageiro e outro e outro, até a lotação ficar completa. É o máximo!), visitar museus e bazares é a melhor forma de conhecer este hospitaleiro povo (ávido de conhecer a nossa realidade), principalmente os bazares onde a vida fervilha num vai e vem de trocas comerciais. A proximidade do deserto dá uma cor única a cidades como Yazd, Esfahan e Shiiraz, lindas, quentes e cheias de história. Foi em Persópolis que o império Persa cresceu e está ali à nossa espera. Lagos salgados no meio do deserto. E Bam, cidadela com mais de 2000 anos feita de tijolo e lama, repleta de ruelas estreitas e bares com chá e tabaco que fumamos em lindos cachimbos de água.
Foi num destes bares que os nossos raptores nos identificaram para, posteriormente, nos sequestrarem a meio do trajecto até Zahedan, (serviríamos de moeda de troca por um narcotraficante condenado à morte) cidade multifacetada, cheia de diferentes etnias, que cresceu com tráfico de gasolina e drogas (ópio), dada a proximidade de países como o Afeganistão e Paquistão. Mas acabei por não chegar a Zahedan, a 200Km no meio do deserto e montanhas, intimidado a tiros de Kalashnikov e atirado para a caixa de uma pick-up, passei a viver um misto de terror e deslumbre. O inacreditável tinha dado lugar ao cansaço, à fome e ao frio imenso da noite repleta de estrelas, às silhuetas dos traficantes, às fogueiras dos nómadas, às reuniões de anciãos, à calma, ao silêncio e à imensidão do deserto. Os oásis encantados, os camelos selvagens, a fome, o pão, a lata de atum, a forma primitiva como aquele povo vive, as grutas, os leitos secos dos rios, a busca de água, os chefes das diferentes tribos com que nos cruzávamos (e com quem tinham de negociar a nossa permanência no território), o dormir sempre em cima de pedra, a troca de ópio por comida, a necessidade de caminhar sempre… e sempre, os rostos rudes, os olhos, o espanto das crianças, o olhar fugidio das mulheres. A solidão, a saudade, a ansiedade, a angústia e o espanto por estar a viver tudo isto. A falta que o mais básico faz, um pouco de papel... um cigarro, é parte do que me recordo desses inimagináveis dias que vivi.
Foi sem dúvida uma experiência única e até determinado ponto, gratificante. Ensinou-me a olhar os meus valores de outra forma e a viver com mais sabor.

1 comentário:

  1. Mais Sr. Pinto!!! Venho cá eu todos os dias e isto está parado!! De "maneiras" que assim é complicado!!!

    Aquele Abraço,
    Amorim

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