sábado, 5 de dezembro de 2009

primeira noite

Sentados no banco de trás, trocávamos olhares interrogatórios, tentando descobrir respostas nas testas uns dos outros. À frente o Afegão a conduzir e ao lado o chefe, na casa dos vinte, sorriso aberto, kalashnikov na mão, de fato baluchi verde tropa (como a maioria do grupo, mas em bom estado), ar afável e com boa postura.
Viajávamos por entre pedras, de luzes apagadas, a corta-mato, ainda com um luar de quarto crescente, semelhante ao da Bandeira da Turquia, como que a dizer-me “estás longe de casa!” Os meus olhos percorriam tudo, o outro carro, os sequestradores, a forma como estavam dispostos, a paisagem envolvente, o magnífico céu repleto de constelações, a nossa posição em relação às estrelas. Os sorrisos vitoriosos de todos, o olhar de um negro profundo do Afegão, os gestos de comando, enérgicos e decididos do chefe, a forma de falar, o tentar perceber, nem que fosse uma palavra isolada.
Íamos muito devagar devido à extrema dificuldade do terreno e para não sermos detectados, sem luz. A ponto de ver dois guerrilheiros a retirar as pedras e a indicar o melhor trajecto. Pelo menos estava a curtir a viagem. Pensei algo do género: “estes gajos só com tracção atrás, com as caixas das pick-ups cheias de tralha e gente, sem luz nem trilho... qual Dakar qual quê”.
Tinha os sentidos todos apurados, os cheiros, os sons, as palavras imperceptíveis (repletas de arrr. . . mad. . . mud), o sabor do ar. Os solavancos do carro, o ranger das suspensões, a força do motor, a destreza com que serpenteávamos montanha acima.
Mas também o medo, a dúvida, a angústia que os nossos olhos deixavam transparecer, sempre que se cruzavam. Íamos em silêncio. O chefe interpelou-nos sobre “de onde éramos?”, claro que sorriu quando dissemos Portugal, (não por menosprezo, mas porque em Farsi quer dizer laranja, influência da nossa presença na época dos Descobrimentos), “o que fazíamos ali?”, “para onde íamos?”. Lá respondíamos num misto “portu-inglês-gestual” e também questionamos, “o que queriam?”, “porquê nós?”, “por quanto tempo?”, isto num autêntico frenesim, falávamos os três chegados para a frente sobrepondo a voz e mãos uns aos outros. O chefe dizia algo como “atache”, e gesticulava para termos calma, e lá repetia o que já nos tinha tentado dizer no inicio. Não nos satisfez.
Andamos pelo menos quatro horas neste tipo de terreno. Até que ao longe vi luz, tipo estrada, ou aldeia, mas por muito pouco que fosse, senti-me menos longe, mais próximo do que me é familiar, cheguei a pensar: “será que vai acabar?” … “ou não?” … “vamos parar e comer?” … “serão os negociadores?”, naturalmente esperançado num final imediato. Aproximávamo-nos a passo de caracol, os meus olhos tentavam perceber o que estava a ver, descortinar algo, como luzes de carros, ou de janelas, ou de ruas. Mas eram fixas, fracas e não ultrapassavam as três, quatro, abafadas pala enormidade das montanhas.
Começamos a descer, as primeiras acácias (árvore de goma arábica), a erva-de-camelo (vegetação rasa e dura), a areia, os primeiros “atolanços” (igual a ter de empurrar), e junto a um leito de rio seco a paragem. Saímos todos dos carros, sentamo-nos no chão, a primeira fogueira, o primeiro gole de água, a lata de atum e pão, o chá e por fim (e pela primeira vez na vida) o cheiro do ópio que fumavam.
Aproximei-me curioso, fui de imediato convidado a sentar-me e preparavam-se para me deixar experimentar. Recusei, ainda não estava pronto. Mas o cheiro acre e a cor de um âmbar escuro da gigantesca bola de ópio, despertou-me uma enorme curiosidade.
A primeira forte imagem que tenho na memória: a singular posição como o chefe fumava, o único com um cachimbo próprio para fumar ópio, lindíssimo, de madeira, contrastando com a simplicidade dos restantes, que fumavam com papel enrolado, tipo “palhinha”. As silhuetas com o contra-luz da fogueira, debaixo de um tecto repleto de luzes, as árvores, tamareiras e acácias, a rastejante e rara vegetação, a areia, os godos e aquelas luzes fracas, a cem ou duzentos metros, a iluminar uma aldeia de duas a três casas.
Sentei-me encostado à roda de um dos carros, ligeiramente separado do restante grupo. Acendi um cigarro, olhei as estrelas, comecei a imaginar as minhas filhas em forma de constelações, deixei cair uma lágrima. Um dos sequestradores aproximou-se oferecendo-me um copo de chá e um pouco de pão. Olhou-me com um simpático sorriso e por gestos disse que seriam só duas a três noites, que estava tudo bem. Desilusão. Não iria ser hoje.

3 comentários:

  1. Lindíssimo! Quase me consegui imaginar nesse cenário. Quase..

    Escreva mais!

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  2. PAI , MY SUPER HERO!!!
    Continua a escrever!!!
    Milhões de Bjinhos..!!!
    ADORO-TE

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  3. Situações de perigo ou stress extremo, podem causar traumas inesquecíveis e irrecuperáveis na totalidade, deixando sempre algumas sequelas, ou, se encaradas sob uma perspectiva de uma experiência diferente, uma aventura invulgar, e íntimamente desfrutar algo de novo, e para quem gosta fundamentalmente de viajar e conhecer diferentes comunidades, com usos e costumes completamente diversos dos nossos,pode ser uma expertência inesquecível,permitindo apreciar pormenores de beleza onde outros entrariam em pânico e desespero. Sem ser a Síndrome de Estocolmo,entre "o copo meio cheio e o copo meio vazio, o senhor escolheu o copo completamente cheio. Os meus parabéns.
    A.Martins

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